Outubro se encerra com suas promessas marrons.
Eis que chega novembro para celebrar memórias em flores e lágrimas. A ilha, incendiada pelas paixões políticas se protege em céu-manto azul. Enquanto se deixa corroer por alvas, ácidas e corrosivas espumas.
São FRANCISCO e MACAU
Luiz Avelino, Seu Dudu, Sacristão Paroquial, diante da Igreja de São Francisco, 1985 |
Quem visita Macau no mês de outubro não demora a perceber um grande número de pessoas usando roupas na cor marrom. Não se trata, como alguns podem pensar, de seguir modismos ocasionais. São os devotos de São Francisco que se vestem com as cores franciscanas para expressar sua fé e pagar promessas durante o mês de aniversário do popular santo da igreja católica. Não são poucos os testemunhos de curas milagrosas por intermédio dele na cidade.
foto de JOSELITO BRAZ |
Um homem, por certo, cuidou muito bem de disseminar essa devoção entre os macauenses: Luiz Avelino de Souza, popularmente conhecido como Seu Dudú, antigo sacristão da Igreja Matriz. Há 45 anos ele mantém a promessa de levar romeiros até a cidade de Canindé, no Ceará, cujo padroeiro é São Francisco. Na última quarta feira, mais uma vez ele cumpriu seu compromisso com o santo. Um ônibus lotado de devotos seguiu a viagem de fé pela estrada que se encheu outra vez de preces e cantos de louvor.
tradição
Para manter seu pacto de fé, Seu Dudú, aos 75 anos não mede esforços nem se deixa abater pelas dificuldades. A memória ainda é lúcida e ele lembra com nitidez das primeiras romarias feitas por volta de 1939. “Naquele tempo era muito difícil e a gente ia mesmo a pé”, relembra. A viagem demorava um mês inteiro. Depois surgiram os mistos do velho Gustavo Cabral e “as coisas melhoraram”. De lá para cá as histórias de milagres e graças alcançadas por intermédio do santo ampliaram significativamente o número de devotos em Macau.
foto de JOSELITO BRAZ |
Quando Seu Dudu tomava conta da Matriz e zelava com carinho as imagens e seus altares, São Francisco era sempre um dos mais venerados. Mas em razão das romarias, a fama do santo milagreiro foi crescendo tanto na cidade que apenas um altar tornou-se pequeno para abrigar cartas, fotografias e esculturas trazidas pelos fiéis que obtinham graças e precisavam pagar suas promessas. Há dez anos ele ganhou uma capela e tornou-se o padroeiro do bairro do Valadão.
A cada ano o cordão dos franciscanos aumenta mais e a tradição passa de avós para netos. A festa é celebrada durante nove dias e é encerrada com uma enorme procissão no dia 04 de outubro. Na capela do bairro há uma sala dos milagres onde se acumulam objetos trazidos pelos pagadores de promessas. São centenas de fotografias, muletas, óculos, mãos, pés, seios, cabeças, feitas de gesso ou madeira guardadas num baú, que indicam milagres alcançados por incontáveis católicos.
romaria
A romaria de Seu Dudu sempre acontece nos primeiros dias de outubro. Há décadas o mesmo ritual se repete. Uma missa campal é celebrada na Rua Marechal, em frente à casa do velho romeiro que a assiste de pé ao lado da imagem de São Francisco, dos filhos e netos e de uma pequena multidão formada por romeiros e familiares. Ao final da missa o ônibus é abençoado pelo padre e segue a viagem que dura umas oito horas. Até o motorista se chama Francisco. Compenetrado, ele diz que em 28 anos de profissão essas “são as viagens mais tranqüilas”.
Luiz Avelino sempre vai sentado na primeira cadeira “para garantir a ordem e o respeito”. Músicas sacras são entoadas durante todo o trajeto, intercaladas por fervorosas orações. Nas primeiras horas da manhã os romeiros chegam ao seu destino. A pequena cidade de Canindé, no Ceará, já está cheia de devotos e peregrinos que chegam de todas as partes para assistirem a festa do padroeiro, dia 4 de outubro. A hospedagem é precária, mas ninguém reclama. O calor é intenso, mas todos suportam.
Nos últimos 45 anos, apenas uma vez Seu Dudu não pode comparecer em Canindé por motivo de doença. “No ano passado o médico me prendeu e não me deixou ir, mas São Francisco já deu um jeito e lá vou eu de novo...”, diz, rindo. Na verdade, ninguém na cidade acreditava que ele pudesse voltar à romaria em razão das complicações trazidas pela velha diabetes. “Não enxergo quase nada, os pés doem, mas se alguém me guiar eu vou longe”, afirma confiante. Diante de tanta fé, quem vai duvidar?
depoimentos
Raimunda Barbosa da Costa há 25 anos acompanha o velho Dudu na caminhada. “É uma felicidade imensa que a gente sente a cada ano. Voltamos com a fé renovada”, afirma. Há algum tempo ela se mudou para Natal e levou na bagagem a devoção que espalhou na vizinhança. “Aprendi com Seu Dudu a gostar de São Francisco e hoje, em Natal, organizamos outra romaria no mês de Janeiro”.
Não há limite de idade para ser devoto. Há romeiros entre quatro e oitenta anos, todos vestidos na cor franciscana. Jéssica Menezes, aos quatro anos não entende bem as razões mas já confessa sua devoção pelo santo Francisco, vestida com um hábito marrom que vai usar pelo resto da vida durante o mês de outubro. Ela paga uma promessa feita pela avó desde que se curou de uma intensa alergia às picadas de muriçocas. Segundo sua avó, Salete Menezes, as feridas que se formavam ‘não tinha remédio que curasse’.
Os depoimentos são vários. Francisca Palmeira, 62, conta que quase perdeu uma perna em 1965 e foi curada graças à intermediação de São Francisco. “Nasceu uma ferida de mau caráter na minha perna e o médico disse que a única solução era ir a capital amputar. A viagem estava marcada para o outro dia bem cedinho, antes de dormir me peguei com São Francisco, fiz a promessa com fé e quando acordei não tinha mais inchaço. Até o doutor disse, é milagre!”, contou. Todo anos eles estão entre os romeiros, descalços e vestindo marrom em homenagem ao popular Francisco que nasceu na Itália, era nobre e se notabilizou no mundo inteiro pela renúncia aos bens materiais e imenso amor pela natureza, pelos animais.
NOTA: Contei essa história para o Diário de Natal em outubro de 1997. Seu Dudu, nosso querido sacristão, já partiu para a eternidade, mas a tradição dos festejos e das romarias permanece igual. Soube que uma das suas ‘discípulas’, Mundinha de Cidinho (citada na matéria) mantém vivas as tradicionais romarias à Canindé. Meus agradecimento ao Blog Joselito Braz pelas fotos atuais da procissão de São Francisco
Um comentário:
Rell,
Uma "ferida de mau caráter" é impagável!
Beijos
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